Enfim, depois de muito tempo publicando neste blog, escrevo aqui minha primeira análise de um RPG. Em um blog cujo mascote é o Strago de Final Fantasy VI, até que demorou bastante, não acham? Dentro deste projeto de curar informações e tecer opiniões sobre a evolução dos jogos eletrônicos, enfim chegou o momento de revisitar um pouco as raízes do Role Playing Game. Os RPGs eletrônicos surgiram primeiramente em computadores no início da década de 1980, inspirados pela busca dos programadores na tentativa de reproduzir a experiência das mesas de RPG de papel e caneta do universo Dungeons and Dragons, surgido no meio da década de 1970. À época, dentre essas inovadoras empreitadas ficaram marcados para a história com maior intensidade os jogos Rogue, Wizardry e Ultima, e dentro da rica história do início dos RPGs eletrônicos é este último do qual vou dissertar nesta análise.
Em 1979, o hoje lendário Richard Garriot ou Lord British, ainda um adolescente, desenvolveu para os computadores Apple II um jogo chamado Akalabeth: World of Doom. Tratava-se de um dos primeiros RPGs para computador, com uma pesada influência da mitologia fantástica criada por J.R.R. Tolkien (Akalabeth é uma referência direta ao livro O Silmarillion), adaptando aos computadores várias regras e conceitos de Dungeons and Dragons. Este jogo tem uma importância histórica gigantesca dentro dos RPGs de computador, pois introduziu uma série de inovações que seriam aprimoradas no futuro por outros títulos: labirintos e calabouços com uma visão em primeira pessoa, mapa do mundo de jogo com vista aérea, necessidade de comida para sobrevivência do personagem, uso de teclas de atalho para comandos no jogo, o uso de inglês arcaico na narrativa... Tudo isto foi introduzido neste que é provavelmente o avô dos RPGs eletrônicos. O sucesso relativo que Lord British conseguiu com o lançamento de Akalabeth levou-o a lapidar suas inovações e desenvolver o sucessor Ultima I.
Ho eyoh he hum! |
Inovações
As mecânicas de Akalabeth foram lapidadas e melhoradas em Ultima I, sendo um jogo de exploração em mundo aberto, com o que chamamos hoje em dia de overworld map - um grande mapa do mundo do jogo permitindo acesso às cidades e calabouços, com uma visão aérea do personagem e os eventos ao redor. É preciso controlar o personagem com o teclado, usando suas setas direcionais, e a cada "teclada" o personagem se move um "quadrado". Ali é possível batalhar com inimigos ou acessar cidades e calabouços, sempre usando comandos do teclado: "A" para atacar, "E" para entrar... Leva um tempo até o jogador se acostumar com os comandos, pois o manual não os cita diretamente e é preciso associar o contexto de cada ação com o nome verbal da respectiva ação. É importante também que o jogador saiba administrar seus recursos, sendo os principais: Hit Points (pontos de vida), Food (grau de nutrição do personagem), Coin (dinheiro) e Experience Points (Exp. Points ou pontos de experiência). Além de tudo isto, é possível equipar o personagem com armaduras, armas e magias, influenciando diretamente na gestão destes recursos citados, os quais vou detalhar mais adiante nesta análise.
Gráficos e Sons
Embora pareçam primitivos hoje em dia, em 1980 não existia nada semelhante aos gráficos de Ultima. O mundo de visão aérea lembrava o estilo do Adventure de Atari 2600 (mais detalhes aqui), porém ao invés de formas geométricas primitivas, era possível perceber a diferença entre cada elemento do cenário. Não havia dúvidas sobre o que era uma montanha, ou as árvores, cidades, inimigos e personagens. Embora fossem ainda representações primitivas, o poderio dos computadores Apple II permitia pelo menos que fossem feitas representações gráficas que estimulavam a imaginação dos jogadores - e que não fossem completamente dependentes da imaginação, como era Adventure alguns anos antes.
A perspectiva do jogo mudava quando se adentrava em calabouços, mudando para uma perspectiva em primeira pessoa, com uma representação gráfica que passava a impressão de profundidade ao jogador, dando a sensação de um mundo tridimensional e contribuindo para a imersão no jogo, aprofundando a experiência do RPG. Os visuais foram em muito ultrapassados ainda na década de 1980, porém tiveram profunda influência sobre os outros RPGs de computador da época, perdurando até hoje. Os sons do jogo são inexistentes, como se poderia esperar de uma época em que as placas de som nos computadores pessoais ainda não estavam difundidas.
A perspectiva do jogo mudava quando se adentrava em calabouços, mudando para uma perspectiva em primeira pessoa, com uma representação gráfica que passava a impressão de profundidade ao jogador, dando a sensação de um mundo tridimensional e contribuindo para a imersão no jogo, aprofundando a experiência do RPG. Os visuais foram em muito ultrapassados ainda na década de 1980, porém tiveram profunda influência sobre os outros RPGs de computador da época, perdurando até hoje. Os sons do jogo são inexistentes, como se poderia esperar de uma época em que as placas de som nos computadores pessoais ainda não estavam difundidas.
Ao iniciar o jogo é preciso criar um personagem. Primeiro, é possível determinar quais serão seus pontos fortes e fracos: força, inteligência, agilidade... Para isto o jogador precisa distribuir pontos para cada atributo, determinando o estilo de jogo. Depois, escolhemos entre 4 diferentes raças - Humano, elfo, anão ou Bobbit (sim, uma paródia aos Hobbits da Terra Média) - mostrando mais uma forte influência do universo Tolkien. Cada raça recebe pontos a mais em alguns atributos. Basicamente, isso define o nível de dificuldade. Eu por exemplo, comecei com um anão focando mais em força física e o chamei de Thorin - em homenagem ao personagem do livro O Hobbit - e até aqui o jogo está bem tranquilo, portanto creio que estou na dificuldade Easy. Acredito que os outros estilos de jogo devem ser mais difíceis, e para ter certeza é preciso jogar mais de uma vez. Depois de escolhida a raça, escolhemos a classe do personagem - uma espécie de especialização em papéis específicos - podendo ser: Fighter (lutador ou cavaleiro), Cleric (clérigo ou monge), Wizard (mago) ou Thief (ladrão/ninja). Percebe-se logo de cara que o jogo tem muitas variações e portanto bastante conteúdo. Logo ao começar, o personagem encontra-se no world map e é possível escolher por onde começar a explorar e isto afeta diretamente na dificuldade da aventura.
Momentos de aperto não são incomuns |
As batalhas são aleatórias, e os inimigos perseguem o jogador, portanto é necessário administrar com cuidado os recursos de HP, Food, Coin e Exp Points. As batalhas ocorrem em "turnos", com a ação do jogador sempre sendo seguida da ação do inimigo. Ao receber dano, perde-se HP, e quando este chega a zero, o personagem morre. Ao vencer um inimigo, ganham-se Exp Points, eventualmente melhorando os atributos determinados no início da jogatina, e consequentemente a evolução do personagem, aumentando o dano causado em batalha. Além de pontos de experiência, vencer batalhas também oferece Coin/dinheiro, pontos estes que podem ser trocados por equipamentos que melhoram defesa, ataques físicos. É possível também comprar magias se seu personagem for especializado em magia (classe wizard).
Outra importante função do dinheiro é comprar Food para nutrir o personagem. A cada número de passos dados, os pontos de Food vão diminuindo, e se chegarem a zero seu personagem morre de fome. A tela do jogo, além dos eventos, mostra todos esses pontos de forma dinâmica, assim como suas ações descritas em texto logo ao lado. É de início um pouco complicada, mas rapidamente se pega o jeito, e funciona incrivelmente bem. Os eventos são ágeis e as coisas acontecem rápido em Ultima I, e o jogo realmente não é tão burocrático quanto dizem ser. Porém, o nível de dificuldade pode ficar alto, pois os inimigos são insistentes, e podem encurralar o jogador.
História e Trama
Neste ancestral dos RPGs a história é muito simples: o enredo se passa em um mundo medieval fictício e paralelo em uma época esquecida, de forma semelhante à Terra Média no universo dos livros de Tolkien. Um mago maligno chamado Mondain, que criou uma gema há 1000 anos, garantindo sua imortalidade. Desde então, o mago liberou monstros e feras malignas, causando o caos em Sosaria - o universo de Ultima. Em um esforço para deter Mondain, um dos nobres - Lord British - convoca um herói para colocar um fim em seu domínio. O jogador é logo informado de que para derrotar Mondain é preciso viajar no tempo e matar o mago antes que ele consiga sua imortalidade. Para isto, é preciso buscar quatro nobres, um em cada reino e cada um com uma gema - que juntas permitirão ativar a máquina do tempo. Para conseguí-las, é preciso realizar uma tarefa específica para cada um dos lordes, em geral envolvendo um calabouço/dungeon, no que hoje chamamos popularmente de "quests". Ao encontrar as quatro gemas, é preciso também encontrar a máquina do tempo, sendo necessário viajar para o espaço (!!!), e destruir naves inimigas (!!!!!) em um segmento de shoot'em up, enfim permitindo ao jogador viajar no tempo e cumprir sua meta.
Impressões
Ultima tem uma forte tendência ao épico, sendo fiel à sua fonte inspiradora vinda da Terra Média. Neste jogo, Richard Garriot criou uma representação eletrônica de um mundo fantástico e expansivo, além de contribuir decisivamente para o gênero RPG em suas raízes. Ultima I, mesmo tendo sido lançado no hoje longínquo 1981, é até hoje um jogo sério. Sério no sentido de fazer-se importante por meio de uma interface sistemática e complexa a uma primeira vista, necessitando de uma certa paciência e capacidade de leitura, e até consulta ao manual de instruções (um luxo que hoje podemos ter com a versão da GOG, altamente recomendada). O manual de instruções, assim como o jogo está todo em inglês arcaico, e é como se o jogador estivesse de frente a um livro mais denso de J.R.R. Tolkien, como O Silmarillion, conforme citei anteriormente. O manejo dos recursos do jogo é difícil no começo e talvez para os jogadores mais jovens seja difícil conhecer as nuances de Ultima sem consultar o manual, ou o GameFaqs. A paciência e persistência do jogador são recompensadas pela satisfação de cumprir uma quest e avançar de níveis. A mistura de gêneros, com a óbvia referência a Star Wars no final do jogo, torna este um jogo cheio de referência aos melhores universos de ficção fantástica.
Um trecho do belo manual do jogo. |
Legado
O legado de Ultima, assim como seu contemporâneo Wizardry, consiste em definir todo o gênero de RPG para computadores e suas variações, inspirando Dragon Quest, Final Fantasy, Baldur's Gate... Ultima tornou-se uma série de jogos muito importante, sendo um dos ancestrais dos RPGs. Embora seja difícil de encarar e tenha pouco texto em comparação com jogos mais recentes, é um título fundamental que deve ser jogado em algum momento por entusiastas de RPG.